sábado, 18 de março de 2023

 

Bom dia camaradas

O presente artigo visa fazer uma singela apresentação do livro Bom dia camaradas, do escritor angolano Ondjaki publicado pela primeira vez em dezembro de 2000, pelas Edições Chá de Caxinde, na coleção Independência.

No curso deste trabalho, nosso objetivo será o de proceder a uma breve biografia do autor; a uma análise do romance, levando em consideração o gênero literário escolhido pelo escritor e os elementos que marcam a narrativa, bem como uma breve contextualização do panorama histórico-político de Angola, para a compreensão do ambiente onde se passam as aventuras do menino Ndalu, personagem principal da história. 

O autor

Ondjaki nasceu Ndalu de Almeida, em Luanda em 1977. Escritor, poeta e artista plástico, Ondjaki que é filho de angolanos, sua mãe professora e o pai, funcionário do ministério, passou a infância em Luanda com os pais e as irmãs. Licenciado em Sociologia em Lisboa, fez o doutoramento em Estudos Africanos em Itália. Ondjaki é também cineasta e em 2006 codirigiu o documentário Oxalá cresçam pitangas – histórias da Luanda, juntamente com o também cineasta Kiluage Liberdade. Ganhou vários prémios literários, entre eles o Prémio Jabuti de Literatura, em 2010 e o Prémio José Saramago, em 2013. Desde de 2007, o autor mora no Rio de Janeiro, Brasil. 

O livro 

Bom dia Camaradas é um romance, narrado pelo protagonista, o menino Dalu.O leitor acompanha, pela narrativa leve e infantil de Ndalu, um recorte do cotidiano do menino; sua vida em família, que aparenta ser bem estabelecida em Luanda, seus dias na escola, as aventuras com os amigos, a relação com os professores cubanos e com o camarada António, empregado da casa.  

O universo de Ndalu e seus amigos é repleto de histórias divertidas, como a do Caixão Vazio, que põe toda a escola em polvorosa, com destaque para a passagem hilariante da professora de inglês que corre mais do que os próprios alunos, fugindo do suposto grupo reacionário que estaria a invadir a escola.

Ndalu também compartilha com o leitor momentos de pura emoção, como quando ele e seus amigos se despedem dos professores cubanos, que são chamados de volta a Cuba ou quando toma conhecimento da morte do camarada António.

A guerra civil angolana serve de cenário difuso para toda a narrativa. O clima de tensão e medo que envolve a Angola pós-colonial dos anos oitenta, pano de fundo da trama é atenuado pelo olhar de criança de Ndalu, que convive com situações tensas, com alguma naturalidade, sem se dar conta da severidade e do perigo que algumas delas envolvem.

A Angola de Ndalu 

Localizada na costa ocidental da África, N’gola, no idioma do originário povo bantu, tornou-se Angola desde que os colonizadores portugueses lá chegaram e fundaram a cidade de Luanda, hoje capital do país. Angola foi colónia de Portugal desde o século XV até meados do século XX. 

A resistência contra a dominação colonial começa a tomar corpo nos anos 50 e desemboca na deflagração, em 1961, da guerra colonial contra Portugal, que dura até 1975, com a proclamação da independência de Angola. 

Logo após a declaração de independência teve início a guerra civil angolana, levando ao combate os três movimentos guerrilheiros que disputavam o poder: o MPLA, o FNLA e a UNITA. Em fins de 1990, o MPLA.

O recorte da narrativa se encerra simultaneamente com a notícia do que seria o fim da guerra, com o anúncio de uma reviravolta política, quando o comando do MPLA (Movimento Popular para Libertação de Angola) decide abandonar a orientação marxista-leninista, adotar um sistema de democracia multipartidária e convocar eleições, que vieram a realizar-se em 1992, e das quais o MPLA saiu vencedor. 

Inconformado com o resultado das eleições, o comando da UNITA decide retomar a guerra que só encontra seu fim com a morte, em combate, do líder da UNITA, Jonas Savimbi, em 2002.

Bom dia, camaradas e o Bildungsroman 

No que tange à sua estrutura, Bom dia camaradas é classificado como um romance de aprendizagem ou “Bildungsroman”; (sub)género literário, originalmente vinculado ao âmbito religioso, onde a formação do homem estava subordinada ao modelo de Deus; tendo sofrido uma mudança de paradigma, por influência do Iluminismo do século XVIII, no qual o homem, por ele mesmo, se torna o modelo a ser seguido. Modelo a partir do qual o individuo se desenvolve de acordo com sua própria natureza. 

Apesar de enraizado na cultura europeia como um todo, por conta de suas relações com a ideologia burguesa ocidental, o Bildungsroman foi imortalizado por Göethe, através do romance Wilhelm Meister Lehrjahre (1795/97). 

A temática deste (sub)género literário – o género de formação ou romance de aprendizagem, gira em torno de um protagonista masculino, em geral muito jovem, que, por força das circunstâncias pertinentes ao ingresso na “vida adulta”, vê se descortinarem diante de si e de sua inocência venturas e desventuras do mundo “fora de casa”; encontros de amizade, descoberta do amor, deceções decorrentes de sua ingenuidade e credulidade; elementos que se transmutam em experiência que dão estofo para seu empoderamento como agente de sua própria realidade, e que servem também para firmar sua individualidade e a conceção de pertença a si mesmo como sujeito no mundo. 

Considerações finais 

Apesar de ser possível identificar em Bom dia camaradas vários elementos que caracterizam um Bildungsroman, tais como: a capacidade do protagonista de, sendo agente, objeto e destinatário da ação, contruir sua identidade, em integração com o mundo e a narrativa muito próxima da autobiografia mantendo, contudo, o cunho ficcional, há no livro uma situação diferente das que, em geral, ocorrem nos romances de aprendizagem: aqui, não há habitual deslocamento do protagonista, o afastamento de casa, onde ele vai passar por toda sorte de aventuras e desventuras, que servirão para moldar seu caráter e trazê-lo de volta à casa, já um pouco mais amadurecido e pronto para assumir seu lugar na sociedade. 

O tom alegre, coloquial e quase naive da narrativa de Ondjaki deixa no leitor uma sensação de que, apesar do cenário conturbado da guerra civil que acontecia em Angola no período em que se passa ação do livro, Ndalu é um menino que não perde a meninice. Ele vive “aventuras” condizentes aos garotos de sua idade, tem uma vida familiar tranquila, cria laços com os professores cubanos e se entristece com a partida compulsória deles, uma vez que por razões políticas, Cuba chama de volta seus cidadãos que estavam destacados em Angola.

Eventos como a visita da tia que mora em Portugal desperta nela a curiosidade dos meninos em relação às diferenças na vida cotidiana dos dois países; e a morte do camarada António, que era o seu referencial para o conhecimento de uma Angola anterior à independência, que ele não teve contato dada a sua idade, faz com que Ndalu sofra o primeiro sentimento de perda real.  

Ondjaki relata, com a intimidade de quem conheceu a vida em Luanda nos anos 80/90 e com excelente senso de humor e simplicidade, cenas da vida diária do menino e de suas relações interpessoais.    

Ao longo de quase todo o livro, o menino não é nomeado. Somente uma vez, e lá pelo fim do livro é que se menciona, quase que de “raspão”, o nome Ndalu. E o leitor desavisado que, por acaso não conheça o autor e muito menos tenha conhecimento de que Ondjaki, que significa “aquele que enfrenta desafios”, é o pseudónimo de Ndalu de Almeida só se dará conta da dimensão autobiográfica do livro, quando obtiver mais informações a respeito do autor. 

Ao fim e ao cabo Bom dia camaradas proporciona uma leitura muito interessante, leve e divertida, apesar de reduzida, do universo cotidiano das crianças de classe média de Luanda, bem como aspetos da vida social e política percebidos através das lentes infantis de Ndalu e seus amigos. 

 

Referências

Ondjak. (2003).Bom dia camaradas. Lisboa. Editorial Caminho.

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Recursos eletrônicos

Borhz, J. (2013). Independência e poesia: Angola em Bom dia camaradas, de Ondjaki. Revista Crátilo, 6 (1), 38-45

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Rosa, J.S. (2012). Entre a ficção e a realidade: Bom dia camaradas e a esperança de dias melhores através do olhar infantil. Ao Pé da Letra. Revista dos alunos de graduação em Letras, volume 14.2, 67-76

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